terça-feira, 8 de maio de 2012
Notas sobre ortografia
Nesta e nas próximas colunas, vou falar um pouco sobre ortografia. Começo com um fato que ilustra diversas questões. No livro As palavras (autobiografia que cobre apenas a infância do autor), Sartre narra um fato que a maioria dos leitores esquece, mas que chamou minha atenção.
“Meu avô decidira matricular-me no Liceu Montaigne. Certa manhã, conduziu-me à casa do diretor e lhe gabou os meus méritos; meu único defeito era ser adiantado demais para a minha idade. O diretor aceitou tudo: puseram-me no terceiro ano primário e cheguei a acreditar que ia me dar com as crianças de minha idade. Mas não: após o primeiro ditado meu avô foi convocado às pressas pela diretoria; voltou enfurecido, tirou de sua pasta um maldito papel coberto de garranchos, de manchas e jogou-o sobre a mesa: era a cópia que eu entregara. Haviam-lhe chamado a atenção para a ortografia – “le lapen çovache ême le ten” – e tentaram explicar-lhe que o meu lugar era no primeiro ano. Diante do “lapen çovache”, minha mãe caiu na gargalhada; meu avô a interrompeu com um olhar terrível. Começou por me acusar de má vontade e por me ralhar pela primeira vez em minha vida, depois declarou que me haviam menosprezado; na manhã seguinte, retirou-me do liceu e se indispôs com o diretor”.
Aos leitores que eventualmente não tenham percebido exatamente a questão, explico: a grafia oficial da frase francesa do ditado é “Le lapin sauvage aime le thym”. A pronúncia é mais ou menos [le lapã sovag éme lö tã].
Sartre, como qualquer garoto de sua idade e escolaridade – embora já tivesse lido muito – escreveu aquela frase mais ou menos com base na pronúncia corrente. O diretor quis rebaixá-lo por causa dessa “incompetência”. Uma decisão que é muito familiar: costuma-se avaliar a capacidade de escrever pelo domínio das regras ortográficas. Esquece-se (ou não se sabe) que, para uma criança, as irregularidades do sistema, por um lado, e as relações da escrita com as diversas pronúncias não são nada óbvias.
A mãe de Sartre achou graça nas inovações ortográficas de seu filhinho. Nenhuma novidade também nessa reação (ela não era do ramo). Mas o avô tirou Sartre da escola que o rebaixaria por não saber ortografia e o colocou em outra. Sua decisão pode ter sido tomada apenas por se tratar do neto, que ele tinha em alta conta. Mas também pode ser devida ao fato de ele se dar conta da diferença que existe entre saber ortografia e saber escrever.
Não estou defendendo o “erro” nem dizendo que a correção ortográfica não tem valor. Apenas digo que a questão é mais complexa.
Tatiane Batista
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